Flor sem estação

R. Bondioli
2 min readJan 21, 2024
Imagem: Pexels/reprodução

Falo que a escrita tem duas faces: a fluída, e a desgastante.

E a desgastante não é exatamente ruim: é, mas não do jeito que pensa. Ela corrói porque não exige somente nosso lado criativo e gramatical; ela exige tudo o que somos, nossa introspecção, nossa extrospecção, nossos momentos de auge e também os de queda, nosso lado que nos envergonhamos, e também o lado que temos orgulho — e sabemos bem para qual lado a balança pesa mais. Ela exige todos os monólogos nunca recitados, as desculpas, as culpas, os remorsos, as madrugadas insones.

A solidão.

Mas saiba: a solidão não é aparente. Ela existe como uma marca na pele da qual escondemos, para não preocupar ninguém — mas, de pouco a pouco, consome o ar de nossa sala de estar. Nossa agonia, da qual também fingimos que não existir, é imperceptível aos olhos alheios, mas muitas vezes se torna insuportável. Mas continuamos a sorrir de qualquer jeito, na esperança de passar despercebida e sumir subitamente — e essa é, sem dúvida, a maior carga de ser um escritor: a certeza de expressa todo o seu tormento e esperar secretamente que ninguém entenda do que se trata.

E isso, meu amigo, desgasta muito.

Aí, quando ignoramos esse lado, aparece ela: a face fluída. Ela é faceira, risonha, amigável — não com os outros, propriamente: consigo mesma. Ela não precisa de sorrisos, de aparições, de aplausos; sua proposta e propósito mesclam em um só: a autossatisfação. Sim, porque escrever é ar. É dor, mas é ar. É suplício, mas é ar.

É alívio e ar.

Tudo se despeja no papel, facilmente, quase como uma automação. É como se um comando fosse acionado e pronto — o texto se autocria e se lança, sem intervalos para se semear; já nasceu botão e flor.

Uma flor de qualquer estação.

--

--